O filme Matrix apareceu em 1999 mais como uma curiosidade, como “mais um filme daqueles de ficção”, pelo menos para os não aficionados em ficção científica, em um de seus gêneros mais intrigantes, o ciberpunk distópico. Porém, logo “aquele filme de ficção” se tornou um cult, tanto pela abordagem temática quanto pelas cenas proporcionadas por tomadas inovadoras.
O objetivo não é discutir o enredo do filme em si, mas sim a questão sobre a realidade, que aparece de forma significativa em um diálogo entre Morpheus e Neo:
Esse diálogo ocorre logo após Morpheus mostrar a Neo que o mundo em que ele acreditava viver nada mais era que uma simulação de computadores, e a “realidade” (no sentido comum da palavra) era muito diferente: o mundo havia sido destruído em uma guerra entre humanos e máquinas. Diante do espanto de Neo em entender essas duas realidades, a simulada e a outra, “real”, Morpheus tenta mostrar-lhe que a realidade que se supõe clara e definida não é outra coisa que sinais elétricos interpretados pelo cérebro humano.
Desse aparente paradoxo é possível derivar algumas questões interessantes sobre o estatuto da realidade para nós, humanos, como: é nossa mente que cria a realidade que percebemos? Ou a realidade é definida em si mesma, e o que temos é somente uma descrição do que existe de fato em si?
É possível entender que essas questões sobre a realidade estão presentes na filosofia desde o seu início. Por exemplo, René Descartes, quando busca encontrar o que chamou de certezas absolutas, utiliza do questionamento sobre a realidade para sua investigação. Para ele, os sentidos já o enganaram e, portanto, não devem ser considerados como fonte de conhecimento; mas e o sonho? Os sonhos poderiam corresponder a uma realidade, já que é difícil discernir. Descartes argumenta sobre a possibilidade de existir um gênio maligno, capaz de enganá-lo sobre a realidade:
“Suponho, portanto, que não existe aquele Deus, que é muito bom e que é a fonte soberana da verdade, mas que um certo gênio do mal, não menos astuto e enganador do que poderoso, empregou toda a sua diligência em mim. Para enganar. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas externas que vemos, são apenas ilusões e enganos, que ele usa para surpreender a minha credulidade.” (DESCARTES, René. Meditações sobre Filosofia Primeira. Campinas: Editora Unicamp. p. 31-33.)
Como seria possível se ter certeza de que não somos enganados dessa maneira, seja por um “gênio maligno”, ou, por exemplo, um computador? O centro do argumento cartesiano é perfeitamente adaptável ao questionamento de Morpheus e de Neo.
Outra abordagem filosófica, já mais próxima da realidade tecnológica do mundo exposta em Matrix, é o argumento chamado cérebro em uma cuba, analisado e discutido por Hilary Putnam, entre outros.
“Imagine que um ser humano (você pode imaginar que é você mesmo) foi submetido a uma operação por um cientista louco. O cérebro da pessoa (seu cérebro) foi removido do corpo e colocado em uma cuba de nutrientes que mantém o cérebro vivo. As terminações nervosas foram conectadas a um computador poderoso que faz com que a pessoa cujo cérebro está localizado tenha a ilusão de que tudo está perfeitamente normal. Parece haver pessoas, objetos, o céu, etc.; mas na verdade tudo o que a pessoa (você) está experimentando é o resultado de impulsos eletrônicos que viajam do computador para as terminações nervosas. O computador é tão inteligente que se a pessoa tentar levantar a mão, o feedback do computador fará com que ela “veja” e “sinta” a mão sendo levantada. Além disso, ao variar o programa, o cientista louco pode fazer com que a vítima “experimente” (ou tenha alucinações) qualquer situação ou ambiente que o cientista malvado desejar.” (PUTNAM, H. Brains in a Vat. Em K. DeRose and T.A. Warfield (eds.), Skepticism: a Contemporary Reader. Oxford: Oxford University Press, 1992.)
A refutação científica a essa ideia, assim como à própria realidade exposta no filme, é bastante robusta. Na atual condição da ciência não há relatos de experiências reais e exitosas sobre sequer a possibilidade de realizá-la. Mas como a filosofia se dá a experimentos lógico-mentais, há muita literatura sobre a ideia do cérebro em uma cuba e suas possíveis consequências, principalmente com relação problemas epistêmicos e/ou semânticos.
Há, porém, uma outra possibilidade de tratamento do problema da realidade. Em 2003, o filósofo Nick Bostrom, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, formulou a hipótese da simulação:
“Numerosos trabalhos de ficção científica, bem como algumas previsões de tecnólogos sérios e futuristas, preveem que uma enorme quantidade de poder de computação estará disponível no futuro. Suponha por um momento que essas previsões estejam corretas. Uma coisa que as gerações futuras poderiam fazer com seus computadores superpotentes é executar simulações detalhadas de seus ancestrais ou de pessoas como seus ancestrais. Como seus computadores seriam tão poderosos, eles poderiam executar muitas dessas simulações. Suponha que essas pessoas simuladas estejam conscientes (como estariam se as simulações fossem boas o suficiente e algumas das posições amplamente aceitas na filosofia da mente estivessem corretas). Então, pode ser que a grande maioria das mentes como a nossa não pertença à raça original, mas sim a pessoas simuladas pelos descendentes avançados de uma raça original. É então possível argumentar que, se fosse esse o caso, seria racional pensar que provavelmente estamos entre os espíritos simulados e não entre os biológicos originais. Portanto, se não acreditamos que estamos vivos atualmente em uma simulação de computador, não temos o direito de acreditar que teremos descendentes que farão muitas simulações desse tipo de seus ancestrais. Esta é a ideia básica.”(BOSTROM, Nick. Are You Living in a Computer Simulation? Philosophical Quarterly, v. 53, Issue 211, April 2003, pp. 243-255.)
A hipótese da simulação parte do princípio de que existe ou existirá uma grande capacidade de processamento em uma civilização capaz de realizar simulações, fato significativamente, mais possível do que se manter um cérebro em uma cuba.
Existem, inclusive, aspectos da realidade que não são explicáveis cientificamente (pelo menos até o momento), mas que caso a realidade fosse uma simulação, teriam explicação pelo menos aceitável. Um desses mistérios diz respeito à velocidade da luz… por que 300.000 Km/s? A justificativa dada pela hipótese da simulação é que, como a luz é a condição física para transporte de informações (nada pode ser transmitido ou viajar a uma velocidade superior à da luz), esse limite nada mais seria do que a capacidade de processamento do sistema que está realizando a simulação. Da mesma forma, todas as questões pertinentes aos aspectos físicos que propiciam a existência do universo e, consequentemente, a nossa (como as forças nuclear fraca, forte, eletromagnética e gravitacional) teriam seus limites e valores explicados, inclusive (e mais importante) a Mecânica Quântica.
Essas hipóteses todas são fascinantes justamente pelas questões que levantam. E se você puder considerar a possibilidade de a hipótese da simulação ser viável, por exemplo, a cena abaixo terá um outro impacto.
Conteúdo produzido por: Professor Doutor Mauro Pellissari
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