Por: Dra. Marta Luciane Fischer
O confinamento de animais para consumo embora se constituía de uma prática intrínseca ao próprio processo evolutivo da humanidade e balizador da consolidação das civilizações, tem ganhado cada vez mais espaço nos debates éticos e bioéticos. A predação é um dos hábitos alimentares presentes na natureza, logo, o consumo de outro ser vivo, seja animal ou vegetal, não carrega em si uma imoralidade questionável. A fragilidade do consumo humano de proteína animal questiona os limites impostos nos sistemas de confinamento que tem como valor norteador apenas o monetário com sérios prejuízos a qualidade de vida dos animais, trabalhadores e do próprio ambiente. Assim, a questão principal não insere necessariamente em questionar se é certo ou errado gostar de consumir carne, mas sim se sustentar um sistema cruel, que inevitavelmente irá impactar de uma forma ou de outra a todos, mesmo aqueles que não reconhecem essas limitações.
Há muito tempo a sociedade e o meio científico tem se preocupado em essa pauta. Para ser mais exata, os questionamentos se iniciaram em 1964 com um livro de Ruth Harrison chamado “Animais machines” (Animais máquinas), no qual a jornalista fez uma denúncia das atrocidades cometidas pelos criadores, a fim de fornecer para sociedade uma carne mais barata e acessível. É importante se ater que nesse momento o mundo passava por uma reestruturação após duas grandes guerras mundiais, e ainda vivia uma guerra fria. Era necessário aumentar a população e fornecer meio para que se tornasse mais produtiva e abastecesse um capitalismo em ebulição. Os animais até então criados em pequenas propriedades rurais, com condições adequadas as suas demandas biológicas, passaram a ser mantidos em confinamento cada vez menores e reduzido cada vez mais suas interações sociais e tempo para abate. Estava estabelecida as “fábricas de carne”. Contudo, o governo britânico não só acolheu as denúncias, como criou um comitê para averiguar se eram cabíveis, e diante da constatação, se mobilizaram em estabelecer diretrizes de bem-estar-animal para nortear as condições dos confinamentos, transporte e abate, publicando as 5 liberdades (conheça elas aqui). A partir daí nasce a ciência do bem-estar-animal, que tem como foco a criação de protocolos para conhecer as necessidades de cada animal e adequar os sistemas para que toda espécie, mantida cativa pelo ser humano, tenha condições de suprir suas necessidades biológicas.
Nesse momento histórico as pessoas preocupadas com a qualidade de vida dos animais poderiam tomar duas decisões: se abster parcialmente ou totalmente do consumo da carne (sugiro a leitura deste nosso artigo) ou protagonizar uma cidadania consciente buscando reduzir o consumo da carne e/ou adquirir produtos reconhecidamente oriundos das chamadas fazendas orgânicas com selos de boas condições de bem-estar-animal.
O movimento atual denominado de farm to fork já havia sido defendido por um filósofo importante na ética animal: Peter Singer na sua obra “a ética da alimentação”, no qual o consumo de animais de pequenos produtores locais seria o melhor caminho para melhorar as condições de vida dos animais, que poderiam ser criados em um sistema doméstico, seria diminuído o sofrimento do transporte, além obviamente de favorecer a economia doméstica e o envolvimento comunitário. Contudo, nessa época não existia ainda a expectativa de se produzir uma carne em laboratório, por meio da biotecnologia da engenharia regenerativa que usasse o conhecimento cultivo celular. O produto que pode ser chamado de carne artificial, carne de laboratório, carne in vitro, carne cultivada, carne sintética ou carne celular tem sido considerado uma alternativa ecológica e sustentável para superar os conflitos éticos, ecológicos, econômicos e de saúde envolvidos no consumo exagerado da proteína animal.
Atualmente essa questão vem sendo estudada em diferentes perspectivas, que envolvem tanto a questão técnica envolvida na biossegurança do produto, até a aceitação da sociedade. Os limites bioéticos foram avaliados por nossa equipe (veja o artigo completo aqui) no qual os autores investigaram 593 produções científicas e verificaram que os benefícios são mais enaltecidos do que as fragilidades. Fato que para os autores pode se constituir em um gerador de risco de vulnerabilidades, caso a questão não seja tratada com cautela. O primeiro ponto que deve estar claro é para quem se destina esse produto.
Os veganos e vegetarianos rejeitam totalmente, pois já superaram a necessidade de proteína animal, substituindo com uma rica diversidade de alternativas, e não precisam mais de consumir algo que reproduza a forma ou o sabor de uma carne verdadeira. Os carnistas, que conscientemente, gostam de carne e não tem conflito com suas escolhas, também não demostram interesse nem mesmo em provar esse produto. Resta, então, aquela parcela da sociedade que se julga imoral por gostar de carne, mas não querer compactar com o sofrimento animal.
Contudo, seria esse público suficiente para justificar um investimento tão alto. A promessa é de uma carne mais acessível, pois uma produção industrial, poderia diminuir o custo, que hoje ainda é alto. Assim a carne produzida, além de maior quantidade, demandaria menos tempo, menos espaço, menor quantidade de água e impacto ambiental, além de ser possível uma intervenção nutricional mais efetiva do que no animal em si. Nesse ponto, tem-se duas questões, ou a carne de laboratório será acessível para camadas mais ricas e cultas da sociedade, ou pelo menor custo seria a única alternativa dos mais pobres consumirem carne, enquanto os ricos continuariam pagando um alto valor, para carne de animal. Os adeptos à abstinência voluntária ao consumo da carne, questionam ainda, o fato de que o consumo da carne traz agregado um referencial de poder do ser humano sobre os animais, e consumir uma “carne artificial’ ainda sustenta esse paradigma, fato que vai contra a um sistema que a sociedade tem procurado romper. A intolerância da sociedade pelo consumo de carne tem chegado a extremos tal como vivenciado no cancelamento de uma onça cuja imagem do momento de consumo foi compartilhado em redes sociais (veja aqui). Os pesquisadores mais visionários sonham ainda com a produção de qualquer carne, a partir de poucas células embrionárias, poderíamos ter a disposição no mercado carne de anta, jacaré, elefante, leões, e por que não, dinossauros!
Nesse momento borbulham questionamentos e pesquisas logo é muito importante ouvir o que os brasileiros pensam, por isso fomos perguntar para sociedade o que pensavam a respeito do consumo de proteína animal (veja o artigo completo aqui). Os resultados demostram que os componentes culturais reforçam a necessidade do consumo da carne para saúde humano, porém as mudanças de perspectivas podem ser alcançadas de duas formas: chocando, ao mostrar imagens de como os animais sofrem no confinamento (tal como o documentário a carne é fraca) ou mostrando para as pessoas que os animais são serem sencientes e possuem emoções (tal como o documentário animais seres sencientes) logo, se nós não queremos sofrer, fazer o outro sofrer é imoral. A pesquisa mostrou que as pessoas estão mais dispostas a mudarem usando a segunda estratégia, pois presenciar o sofrimento, causa sofrimento, o que leva muitas vezes a negação.
Nós concluímos com essa pesquisa que mais importante do que consumir a carne ou substituir por alternativas tradicionais (vegetais, frutas e até insetos) ou tecnológicas (Carne artificial) é uma decisão que deve ser tomada individualmente, contudo, é fundamental que esse consumidor, que é um cidadão, o faça de forma consciente. Para tal, é fundamental um processo educativo e acesso a informações idôneas, para que não seja manipulado por interesses econômicos ou de marketing, e seja tirado dele o direito de pensar por si. Assim, a Bioética preza pela autonomia do consumidor e pela possibilidade de escolha, logo, o debate deve ocorrer em diferentes setores, envolvidos na educação formal ou não normal, no ensino superior ou básico, desenvolvendo competências de protagonismo, senso-crítico e uma visão ampla que extrapole seus interesses pessoais, para o valor de uma sociedade sustentável e justa para todos os seres vivos. As pessoas precisam ter acesso de como são processos técnicos e éticos envolvidos na produção animal bem como dos processos industriais na produção de alimentos processados. O individuo está inserido em uma sociedade, suas decisões não precisam solitárias e carregar o preço de uma escolha errada, as decisões podem e devem ser compartilhadas, acolhidas e consensuais, de acordo com o que aquele grupo acredita que é melhor para todos. Só assim, por meio de uma comunicação sem ruídos e julgamentos será possível estabelecermos um futuro factível para todas as formas de vida.