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Reflexões

Raplogia: as batalhas de rimas como patrimônio da juventude periférica paranaense e brasileira

O filósofo francês Michel Maffesoli criou o termo ‘tribos urbanas’ para nomear a diversidade de expressões artísticas e culturais da juventude contemporânea. De fato, assim como os povos originários, os jovens de hoje moldam suas subjetividades a partir da filiação a um, ou alguns, dos múltiplos conjuntos de práticas e pensamentos que compõem a paisagem social urbana. São mundos de ideias, costumes, relações e tradições muito específicos, constituídos ao longo da segunda metade do século XX, principalmente a partir de mídias e tecnologias de comunicação.

De início, surgiram os mods e greasers, seguidos pelos punks e headbangers, chegando nos atuais cozplayers e k-popers, por exemplo. Quando observados de perto, nota-se que esses grupos não estão interessados unicamente em entretenimento alienante. Pelo contrário: suas ideias, costumes e eventos apontam para verdadeiras experiências que formam visões de mundo e criam sólidas e duradoras relações entre quem participa deles. De modo que são expressões artísticas que carregam consigo profundas e complexas filosofias de vida.

Um desses mundos floresceu com particular influência no Brasil. O Hip-Hop, consolidado ao longo da década de 1980 nas quadras de basquete do Bronx, bairro negro/latino de Nova Iorque, reúne dança, grafite, roupas, adereços e, especialmente, música, o Rap, sigla que, em português, significa ritmo e poesia. Foi justamente essa poesia cantada na cadência de batidas compostas por DJs, acompanhada pelos passos do break e que inspirou roupas largas e coloridas, tênis esportivos e grafites estilosos, que deu voz, movimento e identidade à enorme juventude negra e periférica do Brasil nas últimas décadas.

Outrora marginal e reprimida, hoje, a originalidade do Hip-Hop nacional é reconhecida, dentre outros, pelo sucesso de Osgemeos, dueto de artistas visuais de fama internacional, ou ainda, pela envergadura contundente da carreira dos Racionais MCs, “os quatro pretos mais perigosos do Brasil” que já venderam milhares de álbuns e, inclusive, com um deles adotado como obra literária obrigatória para o vestibular da UNICAMP, Sobrevivendo no inferno, de 1997.

Engana-se, contudo, quem acha que o Hip-Hop tornou-se mero produto da indústria cultural. Nos últimos anos, os jovens da cena criaram e desenvolveram uma sofisticada prática identitária que chamam de “batalha de rimas”. O nome é auto evidente: duas pessoas, envolvidas pela massa que os acompanha, jogam rimas uma à outra. Quem lançar as rimas mais originais, cortantes e entusiasmantes, vence. A comunidade da PUCPR teve a oportunidade de acompanhar uma batalha de rimas e suas variantes recentemente.

No dia 25 de abril de 2023, durante a semana acadêmica de Ciências Sociais da PUCPR, aconteceu a primeira edição do Raplogia, na concha acústica. O evento esteve voltado não somente à batalha de rimas, mas, também, a todo o universo do Hip-Hop, como a poesia falada, slam, pocket show, dentre outros. O objetivo principal era mostrar que a batalha vai muito além de duas pessoas competindo por meio de palavras.

Coincidentemente, no mesmo dia, repercutiu o infeliz pronunciamento de um vereador de Curitiba durante a votação de um requerimento para tornar o rap patrimônio imaterial da cidade. Contrário ao requerimento, o vereador afirmou que “Hip-Hop, não sei o que tem a ver com o Paraná”. Ele certamente nunca colou em uma roda de rima da região. Se tivesse, saberia exatamente como milhares de jovens paranaenses dizem quem são por meio das diferentes expressões do Hip-Hop, estilo tão paranista quanto os desenhos de Poty, a poesia de Leminski e as coreografias do balé do teatro Guaíra. Contudo, um paranismo de quem vive à margem e sempre se sentiu alijado dos processos de reconhecimento da identidade estadual.

Atualmente, em nível nacional, pode-se afirmar que o Hip-Hop está em seu apogeu. As batalhas de rima, por exemplo, são cada vez mais populares. O que explicaria tamanha visibilidade? Em 2019, a Batalha da Aldeia vivia seu auge, organização essa que foi de fundamental importância para a formação do que vivemos agora. Localizada em São Paulo, o corre da Aldeia acontece faz muito tempo. Segundo Bob13, mestre de cerimônia da Aldeia, o começo foi puro investimento e amor pela causa. No entanto, as origens desse movimento estão, de certa forma, longe de São Paulo. O viaduto Santa Tereza, em Belo Horizonte, é um solo sagrado para os amantes do freestyle.

No dia 24 de agosto de 2007, a “Família de Rua” decidiu ocupar a Praça da Estação, basicamente embaixo do viaduto, para promover uma roda de rima e até hoje a maioria das rodas e batalhas seguem a mesma linha. Por exemplo, em Curitiba, a Santa Batalha acontece ao lado do terminal de Santa Felicidade, o que obviamente facilita o deslocamento. O viaduto Santa Tereza em BH é o local onde acontece o Duelo de MC’s Nacional, o título mais importante na vida de um MC. O evento acontece uma vez por ano e o prêmio principal é entrar para a história.

Foto: Pablo Bernardo/Duelo Nacional/G1 Minas Gerais

É interessante analisar como o público foi crescendo e se complexificando conforme as batalhas se popularizaram. Por exemplo, ao analisar as rimas feitas entre 2007 e 2013, nota-se que as construções de rima eram muito básicas, feijão com arroz mesmo, o instrumental/beat era boombap, considerado hoje o mais fácil de rimar. Atualmente, outros quesitos são demandados pelo público, como métrica, flow, presença de palco e principalmente atitude. Quem você é fora da roda diz muito sobre quem você é como MC dentro dela.

Várias batalhas rolam espalhadas por Curitiba e Região Metropolitana, como a Batalha de Pinhais, Meno, Ville, Santa batalha, Duclã, Saturno, ST, Crew, Trix, Bela, CEP, dentre outras. Numa roda de rima todo mundo é tratado em pé de igualdade. Quem bota a cara pela primeira vez é aplaudido três vezes mais, porque todos ali sabem como é difícil tomar essa iniciativa. Como um grito de início das batalhas afirma: “O sonho de MC aqui não é distante, o que vocês querem ver? Sangue!”, mas esse sangue é performático.

As batalhas são uma disputa sim, elas resultam em vencedores e perdedores. Mas, no fim das contas, ao se juntarem para celebrar essas batalhas, é a cena que ganha força e união. Essa espécie de repentismo urbano é um duelo que une. Mateus lançou a primeira rima, Léo soltou a dele e, juntos, demos uma contribuição, ainda que tímida, para uma divulgação sensata desse universo por vezes discriminado e mal compreendido como é o Hip-Hop.

Por: Leonardo Carbonieri Campoy – doutor em antropologia, professor da EEH da PUCPR e pesquisador, dentre outros temas, de juventudes urbanas.

Mateus Rossetim Stuve – aluno do curso de licenciatura em ciências sociais da EEH da PUCPR, bolsista PIBIC e batalhador de rimas, dizem, dos bons.

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